segunda-feira, 21 de agosto de 2006

Salir d’outrora

OS DIREITOS DO VIGÁRIO DE ALVORNINHA

O tecido social da época medieval era um emaranhado complexo de relações de domínio e sujeição perpetuadas pelo costume, residindo o poder nos direitos sobre a terra, que abrangiam todos os que dela dependiam.
Para ser justo, o olhar sobre a história não pode esquecer o contexto de cada época, nem julgar os seus intervenientes à luz de valores actuais que eles não conheceram nem viveram.
Vêm estas considerações a propósito do facto de algumas crónicas revelarem documentos que registam situações do passado que nos parecem hoje de imperdoável tirania dos Monges[1] sobre os habitantes dos coutos, conclusão precipitada e injusta se o olhar se detiver um pouco mais além, no papel histórico que desempenharam na região, na estrutura senhorial em que o mesmo se desenvolveu, na generosidade daqueles que inicialmente trabalharam a terra com as suas próprias mãos.

Frei Manuel dos Santos, cronista-mor cisterciense[2], conta-nos que se lastimavam habitantes dos coutos em 1680 "desta sua sujeição que têm ao Real Mosteiro de Alcobaça", quando alguém os repreendeu: "que não sabiam agradecer a Deus a mercê de os fazer vassalos dos Monges de Alcobaça; porque se fossem (...) vassalos de algum Senhor de Capa e Espada, o pão, que gastam os Religiosos em esmolas na portaria do Mosteiro, havia de gastá-lo o Senhor Secular para manter cães para nos lançar às orelhas".

Eram tempos em que a sujeição dos povos era vista como inevitável, apenas o senhorio poderia variar.
Mas nem só o Mosteiro detinha direitos sobre os povos dos coutos, e nessa estrutura senhorial em que o costume era fonte essencial de lei, prevaleciam as obrigações, mesmo depois de esquecido o facto histórico de onde emergiam.
Era o que acontecia com os direitos do vigário de Alvorninha.

Na resposta ao quesito 6.º do inquérito sobre os forais, de 1824 (A.H.P. Sec. AEM, Cx 19), refere a Câmara de Salir de Matos: "Paga-se ao Mosteiro de Alcobaça, que é donatário de todos os Coutos que o rodeiam, excepto o dízimo das miúnças que cobra o Prior de Alvorninha, e a quantia de dois alqueires por cada moio de pão, que cobra o Patriarcal, a título de tença", esclarecendo na resposta ao quesito 14.º que "... há costume de se pagar o dízimo das miunças ao Prior de Alvorninha, segundo o Foral da mesma Vila, e isto desde que ela foi «escambada» pelo Lugar de Villa Nova, com a Sereníssima Casa do Infantado."

É manifesto o equívoco dos vereadores da Câmara, porque o direito do vigário de Alvorninha é muito anterior, referindo Frei Manuel de Figueiredo (História Corográfica da Comarca de Alcobaça, pág. 192), que este pároco "(...) tem de côngrua, por contrato escrito em 1324 e muitas vezes confirmado, quatro moios de trigo, três de cevada, de 64 alqueires cada um, dízimo de miúdos da freguesia que compreende hoje o território das cinco paróquias que foram desmembradas de Alvorninha: Benedita, Carvalhal Benfeito, Santa Catarina, Selir do Matto e Vimeiro (...)".

A história conta-se em breves palavras:
A Igreja de Alvorninha foi uma das primeiras dos coutos, edificada mediante autorização concedida em 28 de Maio de 1248[3], tendo sido confirmada a integração de um vasto território nesta paróquia, através da demarcação de 9 de Novembro de 1296: "... além do que já tinha, o Vimeiro e a Ferraria, a Granja Nova, o Carvalhal e a Motta, e Selir, e Almofala com todos os seus termos e lugares usados" (IANTT, Alcobaça, Livro 92)[4]:

Foram posteriormente criadas várias paróquias dos coutos, desmembradas da matriz de Alvorninha, a maioria por iniciativa do Cardeal Infante D. Henrique, mantendo o vigário desta paróquia o dízimo das miúças (o direito à décima parte do «gado miúdo») sobre todos os habitantes das novas paróquias, bem como outros direitos, alguns que veio a perder, como ocorreu no conflito entre os párocos de Alvorninha e de Santa Catarina, julgado a favor deste último, por sentença de 1608, na qual ficou decidido que as ofertas dos fiéis pertenciam ao vigário de Santa Catarina e não ao de Alvorninha (IANTT, Alcobaça, Livro 92, fls. 95).
Numa outra sentença proferida no ano de 1416, fora determinado que, ao vigário de Alvorninha (que à data se chamava João Vicente) pertencia tudo o que entrasse pela porta da sua igreja, pertencendo ao Mosteiro tudo o que entrasse pelas portas das ermidas ou capelas da paróquia.

Não gostaram os monges cistercienses da criação das novas paróquias, particularmente no que respeitava à atribuição aos párocos de direitos que deixavam de pertencer ao Mosteiro, dando-nos conta o cronista Frei Manuel dos Santos (Alcobaça Ilustrada, fls. 239), da contestação que alastrava em surdina, contra as decisões do poderoso Cardeal Infante: "(...) não esperou nem ouviu o consentimento e parecer dos monges da casa, o que vendo eles e doendo-se justamente da lesão do Mosteiro na excessiva taxa de côngruas (...) se ajuntaram e fizeram uma reclamação e protesto na qual declararam e protestaram em como não consentiam o que havia feito o Senhor Cardeal; e por ele ser um Príncipe Absoluto, irmão d’el Rey, e seu prelado deles, se calavam e dissimulavam com legítimo medo (...)".

Tal como seu irmão D. Afonso, o Infante D. Henrique teve um papel notável à frente dos destinos do Mosteiro de Alcobaça, mas este estranho personagem da nossa história, que foi Cardeal, Inquisidor Geral, Donatário Perpétuo, Regente e Rei, parece não ter agradado a ninguém, acabando condenado sem remissão pela memória popular, nesse implacável refrão que atravessou os séculos, eco de um ressentimento que talvez não se apague enquanto houver memória: «Viva el-rei D. Henrique / Nos infernos muitos anos / Pois deixou em testamento / Portugal aos Castelhanos».
In Gazeta das Caldas

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