segunda-feira, 31 de julho de 2006

Sílvia e a massa

O mar há muito que recuou mas deixou a marca em Alfeizerão. A dois quilómetros da costa, a vila continua a ser terra de marinheiros, agora sem naus nem caravelas, mas ainda a embarcar nos barcos dos outros. Desses embarcados de hoje pouco se sabe fora de portas. O que chega longe é a fama do pão-de-ló. Chegou ao Japão na proa de um navio, levada pelos marinheiros de Alfeizerão e por lá se transformou noutro pão. A história conta-se entre o partir de ovos de Leonilde e o encher de empadas de Celeste. Trabalham juntas desde os 13 anos e já levam 32 a partir ovos. Nunca fizeram contas a quantos ovos já partiram. São 21 600 por mês... "Ah, foram muitos!", desiste Leonilde, perdida num cálculo de muitos zeros e sem fazer uma pausa nos gestos mecânicos que se repetem a cada dia à mesma hora. Sílvia, a mais nova das três pasteleiras, olha o forno sem se distrair com lendas e loas. Retira uma forma e apalpa a massa para ver a consistência. São três pancadinhas certeiras que anunciam uma fornada a sair.

Há muito que os senhores a banhos em S. Martinho não vestem a melhor roupa para o ritual do chá com pão-de-ló na casa branca de janelas vermelhas decoradas a cortinas de folhos. Fica na antiga estrada que liga Caldas a Alcobaça, agora bem perto de uma das saídas da A8. Numa manhã quente de Julho, entram e saem turistas de calções e chinelos e há uma família de emigrantes em fim de férias que compra um bolo para levar no avião. Mantém-se a gula, mas perdeu-se a forma quase religiosa de cometer um pecado com origem no Mosteiro do Cós, casa de freiras da ordem de Císter. Eram elas as guardiãs da receita que se expandiu com o encerrar do convento no final do século XIX, quando a ensinaram às "senhoras da terra". O sucesso doméstico foi tal que um padre achou boa a ideia abrir uma fábrica até que em 1925 uma sobrinha do empreendedor abria a Casa do Pão-de-ló de Alfeizerão. Em 81 anos, só mudou de mãos em 1992, quando foi parar à família de Helena Monteiro de Castro.

Ao contrário de Leonilde e Celeste, pasteleiras criadas naquela cozinha, Sílvia fez-se mestre na arte do pão-de-ló na concorrência, mas não fala em desvio de segredo. "A receita é sempre a mesma. O que muda é a mão e cada um tem a sua", diz Helena Monteiro de Castro, actual proprietária da casa fundada em 1925, a mais antiga a fazer um doce típico que gostaria de ver certificado. "Andam para aí muitas falsificações. Era bom que as casas que fazem o verdadeiro pão--de-ló de Alfeizerão se juntassem na defesa da marca."

Sílvia é a mais nova da casa, mas conhece de cor todos os segredos de uma massa feita de muitas gemas, açúcar e pouca farinha, que bate até ficar quase branca. Faz pão-de-ló desde os 16 anos e há dez que está ali. Das suas mãos e das de Leonilde e Celeste saem 500 pães-de-ló por dia, fora os pastéis-de-nata, queijadinhas, suspiros, empadas de galinha e barquinhos. "Tudo o que vendemos aqui é feito por elas", adianta a dona, mestre na teoria, pouco eficaz na prática. "Já tentei e nunca sai assim", assume sem desviar os olhos do desenformar de cada bolo, do dosear da nova massa em cada forma, com Sílvia a agarrar a massa com as mãos como quem pega espuma antes que se desfaça. "É tão boa à vista como sabe na boca", comenta, pouco enjoada do que faz há 14 anos e dizendo que, afinal, o segredo está na cozedura: "Tem de ser cremoso sem ficar cru."
In Diário de Notícias

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